INDUSTRIA E NEOLIBERALISMO
1. Introdução
Faz-se
normalmente nos dias de hoje uma conexão estreita entre neoliberalismo e
mundialização do capitalismo (a qual é também chamada, de um modo especialmente
superficial, de globalização). Por mundialização, entende-se comumente a
reconstrução, a unificação do mercado mundial sob a égide do capital
internacional e financeiro; por neoliberalismo, compreende-se o pensamento
político, assim como a prática de governança e de reestruturação do Estado,
originado do predomínio do capital financeiro em relação ao capital produtivo,
em nível global. Essa visão será aqui criticada até certo ponto. Para
apresentá-la de um modo sintético será feito uso aqui de uma condensação de
idéias que se encontra no livro Economia
Marxista do Capitalismo de Duménil e Lévy.
Por mundialização, esses autores entendem uma continuidade e uma ruptura
no processo histórico de desenvolvimento capitalista:
“A mundialização é um processo
muito antigo que Marx havia identificado como uma grande tendência do
capitalismo (a construção do mercado mundial). A progressão das trocas, o fluxo
dos capitais e a exploração global (do mundo) não são invenções do
neoliberalismo. A etapa atual se caracteriza pelo crescimento das operações de
troca e dos fluxos internacionais de capitais, a expansão das sociedades
multinacionais e um novo papel das instituições financeiras internacionais
(Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, etc.).” (Duménil e Lévy,
2003, p. 28-29).
Já para
caracterizar o neoliberalismo, Duménil e Lévy se referem a novos modos de
funcionamento do capitalismo que decorrem dessa mundialização:
“O neoliberalismo se remete aos
novos modos de funcionamento do capitalismo, tanto no centro como na periferia: uma nova disciplina do trabalho e da
gestão dos ganhos dos credores e dos acionistas; o recuo das intervenções
estatais em matéria de desenvolvimento ou proteção social; o crescimento
espetacular das instituições financeiras; a criação de novas relações entre os
setores não financeiros e financeiros com vantagens para estes últimos; uma
nova atitude favorável às fusões e aquisições; uma grande desregulamentação
financeira; um reforço do poder e da autonomia dos bancos centrais cuja ação se
concentra na estabilidade dos preços; a determinação de drenar para o centro os
recursos da periferia. O neoliberalismo dá novas formas à mundialização,
notadamente àquelas da dívida do terceiro mundo e estragos causados pela livre
mobilidade dos capitais. A característica principal da fase atual é sua
extensão gradual ao conjunto do planeta, sua própria mundialização” (Duménil
e Lévy, 2003, p. 29).
É preciso
notar que toda essa caracterização, a qual não deixa de ter o seu interesse
para o entendimento da questão, concentra-se em apontar rupturas nas formas
fenomenais do capitalismo contemporâneo. Ora, assume-se aqui que as indagações
sobre a natureza da mundialização e do neoliberalismo só podem ser esclarecidas
investigando as mudanças que estão ocorrendo na base do modo de produção
capitalista, ou seja, na forma de subsunção do trabalho ao capital, ou ainda,
dizendo de outro modo, na disciplina do capital. Não se procura pensar os
fenômenos contemporâneos a partir de uma análise da repartição da renda e da
riqueza, o que, em última análise, remete-se às lutas de classes, de modo
imediato. Diferentemente, procura-se pensá-los a partir de seus fundamentos
econômicos estruturais. A questão do modo histórico pelo qual o neoliberalismo
se impõe e se espalha no mundo deve ser enfrentada apenas num segundo momento –
o que, aliás, não é feito neste texto.
Sustenta-se
aqui que o capitalismo está saindo da etapa de grande indústria para passar
para a fase da pós-grande indústria e que a matéria privilegiada da relação de
capital – este, lembrando, só existe por meio de suas formas – está se
modificando. Se antes a matéria por excelência do capital era o sistema de
máquinas, agora vem a ser o que Marx denominava de inteligência coletiva
(general intelect) – ou seja, uma força produtiva social inerentemente
desterritorializada que pode estar, em princípio, em todos lugares ao mesmo
tempo. Se antes o capital produtivo aparecia, sobretudo, como ativo físico
(máquina, fábrica, etc.), agora ele se configura de modo especial como ativo
intangível (informação, conhecimento, etc.). São diversas as conseqüências
dessa transformação do modo de produção: dentre essas, cumpre destacar aqui que
o capitalismo se vê, finalmente, como capitalismo[1]. Em
particular, ela põe a descoberto o capital como sugador da força de trabalho
social, ficando assim comprovada no nível da aparência, ao se considerar o
mundo como um todo, as teses da exploração impiedosa e do pauperismo de Marx.
A
argumentação aqui desenvolvida vem a ser uma apropriação crítica da tese de
Wallerstein segundo a qual, entre 1968 e 1989, ocorreu o colapso do liberalismo
(Wallerstein, 2002). Considera-se que essa tese é importante porque aponta para
mudança histórica bem fundamental. Ela será apropriada e absorvida neste texto,
no entanto, não propriamente como morte do pensamento liberal, mas como sua
transformação dialética. O advento do neoliberalismo não será entendido aqui apenas
como o que vem depois do fim do liberalismo, mas como interversão do próprio
liberalismo. Após derivar o liberalismo, seguindo Marx, das contradições do
próprio capitalismo, procura-se mostrar que é o fundo do liberalismo que
aparece no neoliberalismo.
Assim, será
necessário mostrar que as raízes do liberalismo encontram-se na contradição
entre a aparência e a essência do modo de produção capitalista. Para mostrar a
especificidade do neoliberalismo, será preciso distingui-lo de dois momentos
anteriores do liberalismo, o liberalismo clássico e o liberalismo social – o
qual vem a ser uma mudança do liberalismo que acabou confluindo historicamente
com a social-democracia, originada esta do socialismo. O liberalismo social
será entendido como uma primeira negação do pensamento liberal originário[2]. O
neoliberalismo será então considerado como um terceiro momento, constituído por
uma segunda negação, ou seja, como aquele em que o liberalismo é negado como
liberalismo.
Para
desenvolver essa tese, será necessário, primeiro, fazer distinção entre três
momentos do desenvolvimento do próprio modo de produção: grande indústria
competitiva, grande indústria monopolista e pós-grande indústria[3].
Ainda que os períodos históricos característicos dessas formas de disciplina do
capital não coincidam exatamente com os períodos históricos característicos das
formas indicadas de liberalismo[4],
será estabelecida uma relação lógica entre elas. Procura-se mostrar que a
sucessão das formas de liberalismo, assim como das formas de Estado capitalista
(clássico, intervencionista e neoliberal) guardam relação – estão aí inscritas
como possibilidades – com as formas de subsunção do trabalho ao capital. São
possibilidades, aliás, que apenas conseguem se impor, com idas e vindas, por
meio de lutas políticas, no curso da história. Não se pretende aqui, pois,
explicar a superestrutura a partir da estrutura econômica da sociedade.
Relaciona-se
o liberalismo clássico à subsunção real (formal e material) da grande indústria
competitiva, o liberalismo social à subsunção real (formal, material e
organizacional) da grande indústria monopolista e, finalmente, o neoliberalismo
à subsunção real (formal, intelectual e societária) da pós-grande indústria. O
primeiro momento será tratado como o momento da aparência, o segundo será
considerado como o momento da essência, e o terceiro será encarado como o
momento da interversão em que a contradição aparece.
2. Três momentos do capitalismo
É bem sabido
que Marx distingue a subsunção meramente formal e a subsunção real do trabalho
ao capital. Ora, para esse autor, trabalho é atividade orientada para a
realização de um fim particular; já capital é trabalho morto que suga o
trabalho vivo, valor que se valoriza, e que, portanto, tem a si mesmo como um fim geral, único e
absoluto. Subsunção, pois, significa subsunção do particular ao geral, do
plural ao unitário e do relativo ao absoluto.
Para
compreender toda essa questão, pois, é preciso começar pelo conceito de
processo de trabalho, cujos elementos são o próprio trabalho, o seu objeto e os
seus meios. O objeto de trabalho é simplesmente a matéria natural (terra) seja na
forma bruta seja numa forma já modificada pela mediação do próprio trabalho. Os
meios de trabalho são objetos especiais que conduzem a atividade, potenciam a
força produtiva do trabalho e que os trabalhadores interpõem entre si mesmos e
os objetos de trabalho. Ao processo de trabalho enquanto tal, pois, é inerente
a determinação subjetiva posta pelo trabalhador, já que o objeto moldado por
sua atividade precisa ter existido antes em sua imaginação, de um modo ideal.
Não pode haver, em conseqüência, subordinação do trabalho a uma potência
alienante enquanto este permanecer privado, individual e isolado. Eis que a
subsunção do trabalho ao capital apenas pode ocorrer num processo coletivo de
trabalho em que a independência, a individualidade e privacidade do trabalhador
lhe são subtraídas. Dizendo de outro modo, a subsunção do trabalho ao capital
está em contradição com o próprio processo de trabalho.
Se há, então,
subordinação, o processo de trabalho tem de ocorrer no interior de um processo
de produção que transcende o interesse, a vontade e a imaginação do trabalhador
e que é, sobretudo, ao mesmo tempo, um processo de valorização. O trabalho,
agora, produz não apenas um produto que tem “valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não
só valor, mas também mais-valia” (Marx, 1983a, p. 155). O processo de
produção capitalista se configura como tal quando o trabalhador passa a
trabalhar sob o controle do capitalista por meio da venda temporária de sua
força de trabalho. Este último detém quase todas as condições necessárias para
que a produção se realize: possui os meios de produção, as matérias primas e os
instrumentos de trabalho, assim como o dinheiro que pode comprar a força de
trabalho, dinheiro este que o trabalhador recebe como salário com o qual compra
a própria sobrevivência em sociedade. O trabalho, agora, pertence ao movimento
de um processo de produção administrado pelo capitalista. Este o controla como
um todo, assim como o destino do produto, o qual lhe pertence como mercadoria.
Entretanto, ele só não pode possuir o próprio trabalhador que, em potência ou
efetivamente, continua sempre tendo fins que lhe são adversos.
Na origem do
novo modo de produção, no entanto, o agente de sua constituição histórica, o
capitalista, apenas podia contratar a força de trabalho existente, tal como
esta havia se desenvolvido anteriormente. Aqueles que se tornavam inicialmente
disponíveis para vender a sua força de trabalho no mercado haviam se instruído
como trabalhadores em práticas de trabalho artesanais e campesinas, as quais se
caracterizavam por serem processos de trabalho autênticos. Nesse primeiro
momento, portanto, não poderia haver subsunção real do trabalho ao capital, já
que isto só vai ocorrer quando os fins postos pelo trabalhador deixarem de
prevalecer na prática de trabalho, no processo de geração do produto. Dito de
outro modo, a subsunção real requer uma restrição progressiva da subjetividade
do trabalhador, a subordinação de seus fins aos fins da produção capitalista.
De início, pois, apenas poderia haver a subsunção formal do trabalho ao
capital, cuja expressão legal é o contrato de trabalho individual. Nos
conceitos de Marx, subsunção formal significa que o processo de trabalho
enquanto ainda processo de trabalho converte-se em instrumento do processo de
valorização.
Daí que de um
ponto de vista lógico a subsunção formal seja compatível apenas com a extração
da mais-valia absoluta, ou seja, do mais trabalho que é arrancado do
trabalhador pelo prolongamento da jornada de trabalho. A extração da mais-valia
relativa só pode vir a ocorrer quando o capital passa a revolucionar não apenas
as relações entre os diversos trabalhadores, mas também a natureza do trabalho
e os modos de trabalhar, por meio da transformação do processo produtivo pela
aplicação consciente da ciência e da tecnologia. Agora, os trabalhadores
tornam-se materialmente subordinados ao capital, ou seja, tornam-se apêndices
de um processo de produção cujo cerne é um sistema de máquinas. Quando isto
ocorre, não é mais o trabalhador que interpõe os meios de trabalho entre si
mesmo e o objeto de trabalho, mas ele próprio é interposto entre este último e
o corpo do capital (o sistema de máquinas). Se antes os modos de trabalhar eram
determinados pelo princípio subjetivo, ou seja, pela habilidade e criatividade
dos próprios trabalhadores, agora eles estão determinados por um princípio
objetivo, ou seja, por uma lógica sistêmica de produção orientada pela
acumulação que determina os fins particulares perseguidos pelos trabalhadores.
Tem-se, assim, uma primeira negação do processo de trabalho.
De um ponto de
vista histórico, a subsunção formal do trabalho ao capital está associada ao
período da cooperação e da manufatura, quando então predomina a extração de
mais-valia absoluta. Nessas condições de produção, a possibilidade de obtenção
de mais-valia relativa é limitada. É só com o advento da grande indústria,
quando subsunção real do trabalho ao capital torna-se efetiva e se generaliza,
é que passa a predominar o modo relativo de extração de mais-valia em relação
ao absoluto, o qual, aliás, nunca desaparece.
Quando o capital passa a controlar o modo de trabalhar, consegue obter
aumentos da produtividade do trabalho que reduzem o custo de reprodução da
força de trabalho, diminuindo, em conseqüência, a necessidade de capital
variável para gerar um determinado montante de valor adicionado, o que se
traduz, ao final, em um aumento da mais-valia.
É preciso
distinguir, como se sabe, dois períodos nos dois séculos de duração da grande
indústria: o concorrencial e o monopolista. A gerência científica, o controle
dos tempos e dos movimentos (taylorismo), a produção em série e a massificação
do produto (fordismo), tudo isso pertence ao modo de produção da grande
indústria, mas vêm marcar o advento de um novo período caracterizado pela
predominância das grandes empresas monopolistas na dinâmica de acumulação
capitalista. Sob esses termos não se devem entender apenas novas técnicas de
organização da produção, mas procedimentos que moldam e controlam os
trabalhadores. Eles estendem, aperfeiçoam e efetivam os sistemas de produção
nucleados pelos sistemas de máquinas, os quais levam a um grau mais alto a
supressão dos processos de trabalho enquanto tais, com a concomitante
constituição de gigantescos macro-sujeitos objetivos capazes de produzir
grandes volumes de mercadorias. Vem a ser, pois, a plena efetivação de lógicas
de produção objetivas que aparecem como realizações próprias do capital, mas
que estão de fato a serviço de sua acumulação acelerada. Os autômatos fabris
criados pela primeira revolução industrial transformaram-se, agora, em grandes
empresas com muitos níveis hierárquicos e ampla complexidade organizacional. A
subsunção real torna-se mais perfeita no chão de fábrica e é, ao mesmo tempo,
estendida também para os escritórios, tornando-se inclusive organizacional[5].
É importante
notar que, com o advento do capitalismo monopolista, a geração de superlucro
assume uma importância especial na dinâmica da acumulação capitalista. É certo que
ela é inerente ao processo da reprodução ampliada. Entretanto, como ressalta
Mandel, a manutenção de taxas de lucro acima da média de modo durável por parte
dos capitais mais poderosos apenas se torna uma norma quando o capitalismo
concorrencial é substituído pelo capitalismo monopolista[6].
Eis que o monopólio − seja ele da terra, da reserva de força de trabalho ou da
tecnologia − é que permite a obtenção de superlucros. Estas surgem, pois, de
diversas maneiras: da propriedade privada do solo, da vantagem de produtividade
detida por certos capitais, do rebaixamento do preço pago pela força de
trabalho, da compra de matérias primas baratas, etc. Nas relações entre o
centro e periferia capitalista, elas ocorrem por causa das diferenças entre as
taxas de lucros na metrópole e nas colônias, por meio da troca desigual e por
meio da cobrança de rendas tecnológicas.
Ora, essa
última forma de extração de mais-valia por parte dos grandes capitais assume um
caráter decisivo quando a grande indústria vem a ser gradativamente substituída
pela pós-grande indústria. Sem que as formas anteriores, relativa e absoluta,
deixem de existir, a mais-valia extraordinária, sob a forma de renda
tecnológica (oriunda de direitos de reprodução, marca e propriedade
intelectual), torna-se, agora, um meio privilegiado de obtenção de ganhos
monopolistas.
Segundo Marx,
do próprio desenvolvimento da grande indústria deve surgir um terceiro momento
do modo de produção capitalista, o qual, empregando aqui o termo sugerido por
Fausto, é denominado de pós-grande indústria (Fausto, 2002, 128-140). O autor
de O Capital escreveu nos Grundrisse de 1857-1858 que “à medida que a grande indústria se
desenvolve, a criação da riqueza efetiva torna-se menos dependente do tempo de
trabalho e do quantum de trabalho utilizado, do que da força dos agentes [isto
é, da ciência e da tecnologia] que são postos em movimento durante o tempo de
trabalho” (apud Fausto, 2002, p.
129). Dito de outro modo, o valor já não é mais então, apenas, um quantum de
tempo de trabalho, mas se torna influenciado, de um modo qualitativo, pelos
conhecimentos científicos e tecnológicos que são mobilizados no processo de
produção com o concurso necessário dos trabalhadores, durante o tempo de
trabalho. A força produtiva social agora se encontra plenamente objetivada, não
apenas em máquinas, sistemas de máquinas e empresas sistêmicas, mas também no
que Marx denomina de “compreensão da
natureza” ou “intelecto geral”.
Quando isto ocorre, quando os sistemas de produção se tornam mais e mais
automatizados por meio do emprego da microinformática que objetiva essa
compreensão, muda a função do trabalhador. Para empregar os termos de Marx,
pode-se dizer que, então, “o trabalho não
aparece mais até o ponto de estar
incluído no processo de produção, mas o homem se relaciona antes como guardião
e regulador do processo de produção” (apud Fausto, 2002, p. 130).
O trabalhador
da pós-grande indústria – cujo período histórico se inicia, aproximadamente, no
último quartel do século XX – torna-se, pois, guardião e regulador do processo
de produção. Ora, isto é crucial, pois vem marcar, segundo Fausto, uma segunda
negação do processo de trabalho. Nos limites do capitalismo, o trabalhador
continua não determinando os fins de sua atividade, não se torna sujeito de sua
própria atividade produtiva, mas deixa
de estar inserido como peça no processo de produção. Nessa condição,
entretanto, é ainda mantido subordinado de forma real ao capital. Ele é agora
chamado a exercer um papel ativo e co-responsável no processo produtivo; em
conseqüência, a sua compreensão maior ou menor do processo tem de estar a
serviço desse processo. Assim, se ele deixa de estar intercalado, mesmo se é
liberto materialmente do processo de produção[7], o
sistema de produção, no qual se encontram objetivados conhecimentos científicos
e tecnológicos extremamente avançados, passa a exigir dele um comprometimento
subjetivo, de atenção permanente, um envolvimento intelectual com o seu
adequado funcionamento. A pós-grande indústria é caracterizada, por isso, pela
subsunção formal, intelectual e societária do trabalho ao capital.
Na pós-grande
indústria, a matéria por excelência do capital – ou seja, a matéria principal
que dá suporte às suas formas – não é mais a máquina, o sistema de máquina, a
fábrica ou a fazenda em sua materialidade corpórea. A matéria privilegiada do
capital, aquela em que recai o grande investimento porque aí está a fronteira
da acumulação e a fonte dinâmica da geração de lucros, vem a ser agora o
próprio conhecimento científico e tecnológico.
Eis que assim o capital não se associa, sobretudo, aos ativos tangíveis,
mas aos ativos intangíveis ou imateriais – objetos de um novo qüiproquó
fetichista. É por isso que o emprego de expressões como “capital conhecimento”,
“capital humano” e “capital intelectual”, que confunde a forma e a matéria do
capital, se generaliza. É por isso que os chamados direitos de propriedade
intelectual, assim como as rendas tecnológicas, assumem importância crescente
no capitalismo contemporâneo (Perelman, 2003). É por isso, ainda, que os
sistemas de patentes alargam sua função na produção, seja integrando novas
áreas, seja estabelecendo direitos sobre as idéias em si mesmas, seja
aumentando o período de proteção (Andersen, 2002, p. 36). Defende-se, inclusive,
que qualquer “new idea of
doing business” poderia ser agora patenteada, desde que “útil e
concreta”!
Ciência e
tecnologia são bens sociais e públicos, mas se tornam objetos de investimento
capitalista, transformando-se em fonte de renda de monopólio. Por outro
lado, a produção de tecnologias torna-se
uma atividade econômica mais e mais separada da produção propriamente dita de
mercadorias. Assim, uma parte importante do capital produtivo mescla-se com o
capital financeiro – o qual foi desregulado nas últimas três décadas do século
XX. Como a desregulamentação financeira após 1980 mostrou-se condição para a
reestruturação da dominação do capital, na forma da pós-grande indústria, surge
a percepção de que o neoliberalismo vem a ser o domínio do capital
financeiro.
3.
Raízes das formas de liberalismo
Wallerstein
aponta que o pensamento liberal sempre foi contraditório: afirmava que todos os
indivíduos e todos os povos têm direitos iguais, mas dava suporte a um sistema
caracterizado, seja no nível nacional seja no nível internacional, por uma
desigualdade gritante (Wallerstein, 2002, p. 167). O liberalismo, entretanto,
não enxergava aí contradição alguma: ele via apenas diferenças entre indivíduos
que espelhavam e estimulavam a livre competição. Tais diferenças são, pois, o
resultado necessário de um processo social progressivo baseado na livre
iniciativa das pessoas. Daí – como também aponta Wallerstein – que tenha sempre
posto ênfase no processo. Eis que a economia de mercado – afirmava – origina uma
sociedade dinâmica, que, no curto prazo, premia uns – ou seja, aqueles que
trabalham mais, poupam mais, têm mais competência, etc. – em relação a outros e
que, no longo prazo, premia a todos porque a grande maioria melhora. Por isso,
afirmava, o aperfeiçoamento racional do sistema por meio da engenharia social,
que opera aos poucos, corrige as distorções e abre novas oportunidades, gera,
pelo menos como tendência, uma sociedade justa.
Eis, porém,
que isto não está mais no horizonte. Eis, ademais, que a negação dessa premissa
assinala a negação do próprio liberalismo enquanto tal. Para compreender essa e
outras antinomias tão características do capitalismo é preciso começar por
compreender o liberalismo em geral e, em particular, em sua forma clássica.
A contradição
do pensamento liberal está enraizada no próprio capitalismo. Assim como o
Estado[8],
esse pensamento político deve ser derivado da contradição entre a aparência e a
essência desse modo de produção. Dito de outro modo, ele decorre da contradição
entre a circulação mercantil, superfície em que os homens aparecem como
indivíduos, iguais possuidores de propriedade, livres e racionais, e a sua
essência em que esses homens são membros de classes sociais, inerentemente
desiguais e que atuam como suportes de relações sociais que se reproduzem cega
e infinitamente. Na aparência da circulação, trabalhadores e capitalistas
trocam equivalentes, mas abaixo dessa superfície, encontra-se o contrário; a
reprodução reiterada da relação social de produção mostra o fundo do sistema,
ou seja, que o trabalho morto se nutre do trabalho vivo e que aquela relação
era verdadeiramente uma relação entre desiguais, uma relação por meio da qual a
classe dos capitalistas se apropria da riqueza produzida pela classe dos trabalhadores. Num trecho bem conhecido, Marx diz:
“A esfera da circulação ou do
intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e
venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos
naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade,
Propriedade e Bentham.(...) Ao sair dessa esfera da circulação simples ou da
troca de mercadorias, da qual o livre-cambista vulgaris estrai concepções,
conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho
assalariado, já se transforma, assim parece, em algo a fisionomia de nosso
dramatis personae. O antigo possuidor de dinheiro marcha adiante como
capitalista, segue-o o possuidor de força de trabalho como seu trabalhador
(...)” (Marx, 1983a, p. 145).
É apenas
fiando-se nessa compreensão superficial do capitalismo, em que este é tomado
como um sistema constituído essencialmente por mercados, que um autor como Adam
Smith pode estabelecer um dos argumentos mais fundamentais do liberalismo
econômico, a saber, o argumento da mão invisível. Eis que não se tem aqui
apenas uma concepção que se refere ao caráter homeostático de um funcionamento
descentralizado, baseado em decisões individuais localmente informadas, mas
também uma afirmação sobre o caráter espontaneamente beneficente do sistema
econômico capitalista. A mão invisível afiança que há uma coincidência do
interesse individual com o interesse geral e se constitui, por isso, numa
justificativa para restringir ao máximo a ação do Estado (este deve prover,
apenas, infra-estrutura, defesa, segurança e justiça), deixando plena liberdade
de ação aos interesses privados. É claro que o liberalismo clássico atém-se ao
momento formal de relação entre o trabalho assalariado e o capital.
O liberalismo
clássico caracteriza-se pela defesa da liberdade de comércio, do mercado livre
– especialmente da compra e venda de força de trabalho – e da estabilidade do
padrão monetário. É, pois, ideologia que afirma e acentua o aspecto positivo e
superficial do modo de produção capitalista (o seu primeiro momento) para
bloquear uma compreensão profunda de sua natureza (ou de seu segundo momento).
“Ele nega o segundo momento no nível das
idéias, exatamente para ele seja posto no nível da base ‘material’”. Dito
de outro modo, como ideologia, ele “guarda
apenas o momento da igualdade dos contratantes negando a desigualdade das
classes, para que, contraditoriamente, a igualdade dos contratantes seja negada
e a desigualdade das classes seja posta” (Fausto, 1987, p. 299-300). Assim
como o Estado, o pensamento político ideológico é imprescindível para a
conservação do capitalismo; ambos, o primeiro no plano da ação coletiva
concentrada e da violência preventiva e repressiva e o segundo no plano do bloqueio
da formação da consciência crítica, têm como função conservar a identidade de
uma totalidade social contraditória.
Justamente
porque são forças de conservação, o Estado capitalista e a ideologia liberal
têm de acompanhar o próprio desenvolvimento contraditório do modo de produção
capitalista, adaptando-se às mudanças mais profundas que ocorrem nas forças
produtivas e, assim, nas relações de produção e na correlação de força entre as
classes. Fausto argumenta que as leis de desenvolvimento do capitalismo
(tendência à queda da taxa de lucro, por exemplo) e as lutas sociais e
históricas da classe trabalhadora impuseram novas prioridades ao Estado
capitalista, impondo mudanças que se refletiram também no pensamento liberal.
Diante dos desafios do capitalismo monopolista e das perturbações e ameaças
representas pelo agravamento do conflito social, o Estado teve de começar a
atuar, especialmente no século XX, como uma força compensatória e de balanceamento
do sistema. É assim que o liberalismo clássico veio a ser modificado pelo liberalismo
social, que se caracterizou, sobretudo, pela defesa prudente da regulação
estatal na atividade econômica.
É certo que a
intervenção do Estado é uma constante na história do capitalismo[9]. A
intervenção defendida pelo liberalismo social e praticada pelo estado
regulador, porém, destaca-se por ser equilibradora, ou melhor,
re-equilibradora. Ela concerne à regulamentação da concorrência (para
dificultar a permanência no tempo dos lucros extraordinários), ao balanceamento
das forças entre capitalistas e trabalhadores (para moderar os conflitos de
classe e redistribuir os benefícios do crescimento), à suplementação das
funções econômicas exercidas pelos capitais privados (o Estado transforma-se
num agente econômico empreendedor). O princípio norteador do liberalismo social
é que o mercado auto-regulável, deixado a si mesmo, é autodestrutivo e que, por
isso, ele requer a regulação do Estado. O resultado histórico dessa forma de
intervenção foi a constituição do que acabou sendo chamado de estado de
bem-estar social. Nos países da periferia, em que faltavam as condições
materiais de desenvolvimento para chegar rapidamente ao amortecimento das lutas
de classes, o Estado tornou-se desenvolvimentista.
O liberalismo
social surge historicamente quando a aparência do modo de produção é desmentida
na prática social, quando se torna perigoso para os capitalistas aferrarem-se à
mera forma da relação social de produção, quando a conservação do sistema
torna-se ameaçada pela radicalidade das lutas sociais e pelas crises econômicas
que as tornam ainda mais radicais.
Então, a ideologia não pode mais se sustentar apenas na aparência da
relação social; ela precisa agora, de um certo modo, ter em conta a própria
essência dessa relação. A fórmula que emerge consiste em apresentar a essência,
não como essência, mas como diferença: há duas forças sociais em confronto e
elas são distintas; uma delas é mais fraca do que a outra; uma delas consome
insuficientemente e a outra poupa demais; uma delas não encontra ocupação e a
outra não está criando ocupações em número suficiente para que seja mantida a
paz social. Nessa perspectiva, afigura-se que cabe ao Estado atuar como força
equilibradora; a política econômica keynesiana e a política social-democrática,
a partir dos anos 40 do século XX, podem então passar a ocupar o centro do
cenário. Não é mais, pois, a identidade, mas vem a ser a diferença que oculta a
contradição.
O liberalismo
social veio a ser a ideologia apropriada ao período da grande indústria quando
sobrevieram as crises do final do século XIX e quando o capitalismo se tornou
monopolista. Na história do pensamento econômico, entretanto, ele aparece já
nas teses de John Stuart Mill. Segundo esse autor, os fenômenos da produção
estão subordinados às leis naturais, caracterizadas por um determinismo que não
pode ser modificado pelo homem. A repartição, entretanto, pode ser objeto de
legislação humana e esta pode promover uma melhor conciliação do interesse
geral com os interesses privados. A essência do capitalismo não aparece nessa
visão política como exploração, mas como má repartição da renda e da riqueza,
como diferença e desigualdade que o reformismo pode modificar. “A sociedade” – disse Mill – pode submeter a distribuição da riqueza a
quaisquer normas que lhe parecem
melhores” (Stuart Mill, 1983, p. 182).
De um ponto de
vista lógico, o liberalismo social corresponde a um reconhecimento mistificado da
subordinação real do trabalho ao capital. Com a grande indústria – note-se, de
início –, as forças produtivas sociais
do trabalho aparecem como força do capital, de um modo tal que a contribuição dos
trabalhadores passa a afigurar apenas como força coletiva suplementar. Marx
mesmo enfatizou que, por isso, o modo de produção se torna especificamente
capitalista. Não só porque a subordinação torna-se material – a máquina é
matéria adequada à forma capital e a força de trabalho massificada torna-se
cada vez mais adequada à exploração do capital – mas também por causa da figura
real do modo de produção.
“As forças produtivas sociais do
trabalho (...) esse desenvolvimento da força produtiva do trabalho objetivado,
por oposição ao trabalho mais ou menos isolado dos indivíduos dispersos etc., e
com ele a aplicação da ciência – esse produto geral do desenvolvimento social –
ao processo imediato de produção; tudo isso se apresenta como força produtiva
do capital, não como força produtiva do trabalho; (...) A mistificação
implícita na relação capitalista em geral, desenvolve-se agora muito mais do
que podia ou teria podido se desenvolver no caso da subsunção puramente formal
do trabalho ao capital. Ademais, é aqui que o significado histórico da produção
capitalista surge pela primeira vez de maneira cabal (de maneira específica),
precisamente por força da transformação do processo imediato de produção e do
desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho” (Marx, 1978, p.
55-56).
É a realidade
da grande indústria monopolista, entretanto, que mina a aparência isonômica da
sociedade. De um lado, os capitais, investidos em corpos mecânicos colossais,
ou seja, em fábricas que produzem em grande escala, figuram assim como grandes potências
produtivas, de outro, os trabalhadores, os verdadeiros produtores, aparecem
como massas que vivem na pobreza e na insegurança. As lutas sociais tornam-se
mais ameaçadoras. Isto suscita mudanças. A forma do contrato de trabalho deixa
de ser individual para se transformar em contrato coletivo, intermediado de
algum modo pelo Estado. Essa mudança reflete, no plano jurídico, a negação da
igualdade das partes assumida na relação meramente formal entre capitalistas e
trabalhadores assalariados. Devido, pois, às próprias características da
subsunção material, a essência do modo de produção aparece até certo ponto e,
por isso mesmo, deve aparecer de um modo atenuado, não como contradição, mas
como relação de uma parte forte, o capital, com uma parte fraca, o trabalho, que
requer inclusive a intervenção compensatória do Estado.
O otimismo
liberal clássico transforma-se no precavido liberalismo social: a mão invisível
do mercado – reconhece-se – precisa até certo ponto do braço poderoso do
Estado. Entretanto, alguns economistas liberais (ditos também libertários!), já
nos anos trinta e principalmente no pós-guerra, começaram a temer as
conseqüências dos arranjos econômicos, sociais e políticos, os quais
legitimamente podem ser chamados também de social-democratas; segundo eles,
estes arranjos estavam minando o capitalismo. A essência do argumento de Hayek,
por exemplo, não incide em identificar a produção capitalista com uma ordem
natural que se impõe por determinação de leis férreas, mas consiste em dizer
que essa ordem vem a ser moral, que foi constituída de modo espontâneo, mas que
é politicamente frágil, e que, por isso, deve ser preservada intencionalmente,
já que só ela é consistente com a liberdade do empreendimento privado. Ora, com
a crise dos anos 70 – queda da taxa de lucro, estagflação, etc. – o
neoliberalismo sai dos pequenos círculos de intelectuais de direita para ganhar
o comando da política mundial[10].
Assim, acaba aos poucos a política de conciliação relativa oferecida pelo
capital ao trabalho assalariado.
4. Enfim, o neoliberalismo
O Estado para
o liberalismo clássico deve ser economicamente passivo; para o liberalismo
social, ele deve regular ativamente a atividade econômica; já para o
neoliberalismo, ele deve ser um agente econômico ativamente passivo. No dizer
de um autor dessa corrente de pensamento (Louis Baudin), “o Estado deve ser um soberano que prepara sua própria abdicação” (apud Hugon, 1972, p. 152). Deve ser,
pois, um Estado que cria ativamente as condições para a acumulação de capital,
que protege os monopólios das crises econômicas, que enfraquece o poder dos
sindicatos de trabalhadores assalariados, que despoja os trabalhadores da
seguridade social, que privatiza as empresas públicas, que transforma a oferta
de bens públicos (como as estradas, os portos, etc.) em serviços mercantis, que
não só levanta, enfim, os obstáculos ao funcionamento dos mercados e das
empresas, mas é capaz de criar as condições para estas últimas operem de modo lucrativo.
Não se entende
o neoliberalismo se este é compreendido como uma reversão ao liberalismo
clássico – ou como renascimento deste último. Pois, nessa última doutrina, o
Estado nunca pode comparecer como agente econômico. Ora, sob a cobertura
ideológica do liberalismo social e diante de necessidades históricas concretas
postas pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista, o Estado acabou
assumindo, diretamente, funções econômicas complementares às das empresas
privadas. Ele mesmo, por exemplo, instituiu bancos de investimento e se
associou, por esse meio, ao capital privado. Ele mesmo passou a atuar como proprietário
de empresas, encarregando-se da produção em setores de base ou estratégicos, com
o fim de completar a estrutura industrial das nações. Ele passou a regular o
fluxo de dinheiro e do crédito por meio de bancos centrais.
O
neoliberalismo não vem a ser a doutrina do estado mínimo[11].
Ele não isenta o Estado das atividades
de complementação econômica. Ao contrário, para ele, o Estado deve preencher
ativamente os vazios da malha produtiva e financeira, mas deve fazê-lo, porém, não
por meio de empresas próprias, mas preferencialmente adjudicando as atividades
econômicas complementares, por meio de contratos de gestão, às empresas
privadas. Entretanto, quando isto não é possível, como no caso da gestão
monetária, o neoliberalismo propugna pela privatização funcional (ou seja, por
uma gestão que é colocada nas mãos de uma elite tecnocrática que atua na esfera
pública, de fato, como preposto do setor privado). Com o neoliberalismo, o
Estado torna-se diretamente comprometido com a recuperação e manutenção da taxa
de lucro num nível adequado para a continuidade do capitalismo.
O neoliberalismo
– foi dito na introdução deste trabalho – vem a ser a segunda negação do
liberalismo. Se o liberalismo social representa, de certo modo, uma consciência
neutralizada da subsunção do trabalho sob o capital, portanto, da essência
oculta do capitalismo – e, nesse sentido, vem a ser uma primeira negação –, o
neoliberalismo vem expressar o reconhecimento da contradição entre o trabalho e
o capital, ainda que também de um modo mistificado. A contradição é assumida como
disposição social cujo desenvolvimento conflituoso deve ser necessariamente
bloqueado e cuja natureza deve ser contrariada por meio de uma unificação de
classe. Agora, é a própria contradição que tem de ser objetivamente
neutralizada.
Nas condições
da pós-grande indústria, o capital tem de manter a dominação do trabalho de
novas maneiras. Então, por um lado, o neoliberalismo promove um regime de
social darwinismo em todas as esferas da sociedade. Por outro, requer um
comportamento cooperativo de todas as pessoas da população. Em síntese: ele
busca uma corrida de ratos cooperativa! Na presença de crescente anomia,
corrupção e violência, quando muitas dificuldades emergem na superfície da
sociedade, ele propugna sempre pelo reforço do caráter policial e punitivo do
poder da propriedade privada e do Estado.
De certo modo,
pois, pode-se dizer que, com o advento da pós-grande indústria, o capitalismo
tem de aparecer como capitalismo, quase francamente como um sistema baseado em
dominação de classe. Ele surge como um sistema de relações sociais assimétricas
e polarizadas e que gera inerentemente exclusão, mas com o qual é preciso se
conformar já que ele vem a ser o único que permite a liberdade e a democracia
representativa. Eis que esse sistema para os atuais defensores da propriedade
privada dos meios de produção está constantemente ameaçado pela usurpação dos
rendimentos dos proprietários privados pelos sindicatos, pelos governos
corruptos, pela política tributária criada por legisladores demagogos, pela
revolta dos derrotados, etc. A contradição entre o trabalho e o capital não é,
pois, ocultada; ela aparece de certo modo, mas é apresentada como uma espécie
de moto-perpétuo concorrencial necessário à boa sociedade, para o qual não há –
diz o neoliberalismo – alternativa.
É preciso ver
que, diferentemente do que ocorria na grande indústria, na pós-grande
indústria, a força produtiva social do trabalho não aparece mais como força
produtiva do capital, mas sim como atributo da atividade humana coletiva e
social. Porém, essa força produtiva não se apresenta como resultado que decorre
de modo imediato da atividade do trabalhador, mas como algo que é mediado por
ele e que advém do intelecto geral:
“(...) Nessa transformação não é
nem o trabalho imediato que o homem executa, nem o tempo que ele trabalha, mas
a apropriação da sua própria força produtiva universal, sua compreensão da
natureza e a sua dominação dela por meio de sua existência como corpo social –
em uma palavra, [é] o desenvolvimento do
individuo social que aparece como o grande pilar da produção e da riqueza”
(apud Fausto, 1987, p. 131).
O velho
fetiche do capital, ou seja, a identificação da forma da relação de capital com
a máquina, o sistema de máquina e com a materialidade da fábrica, perde força
na sociedade. É certo que o capital pode se apossar de conhecimentos aplicáveis
à produção, por exemplo, por meio de patentes, mas as patentes se mostram, sem
engano, como forma do capital cuja existência depende de uma proteção jurídica
direta, sendo consideradas, justamente por isso, direitos de propriedade
intelectual. Por outro lado, a totalidade complexa constituída pela informação,
pelo conhecimento científico e tecnológico ganha expressão como força
produtiva. Eis que essa inteligência coletiva é uma força que não pode ser
apropriada com um todo, existe necessariamente de modo descentralizado, forma
uma rede extremamente complica e está em permanente processo de reconstrução.
Marx – vale
lembrar – chama essa capacidade produtiva de “compreensão da natureza”, distinguindo-a como fonte por excelência
da produtividade do homem social no estágio avançado da produção desenvolvida
pelo capitalismo. Ora, essa força produtiva é tanto fonte da riqueza material e
imaterial, quanto, junto com o trabalho social, do valor e da mais-valia. Sendo
algo que tem uma existência imaterial e que existe de modo espalhado na
sociedade, aparece, entretanto, junto do trabalho como realização histórica do
homem em geral, não mais como atribuição inerente ao capital. Eis que isto não
impede, porém, que a economia vulgar venha chamá-lo de “capital humano” e
“capital intelectual”. E o fazem porque os capitalistas, como classe e como
indivíduos, continuam proprietários dos meios de produção em geral e, portanto,
das condições do trabalho, mesmo quando elas se encontram na cabeça dos
trabalhadores. Eis que o enigma dessas duas expressões se revela quando se
percebe que a forma da relação de capital aparece do lado da classe
proprietária, mas que a matéria sobre a qual essa forma incide surge como
propriedade inerente à força produtiva da classe não possuidora.
Note-se em
adição, por um lado, que não há mais agora adequação entre a matéria que dá
suporte à forma do capital, ou seja, o conhecimento, e esta mesma forma, e que,
por outro lado, a força de trabalho que mobiliza o conhecimento e que faz com
que a produção não pare, que empenha para tanto a própria subjetividade no
processo de produção, não é mais perfeitamente apropriada à exploração do
capital. É por isso mesmo que a dominação do capital, longe de se abrandar, tem
de se tornar intransigente e totalizadora, estendendo-se não apenas sobre o
tempo de trabalho, mas também para fora desse tempo, para a vida do trabalhador
como um todo. Este último tem, então, de se tornar um trabalhador de corpo e
alma da empresa capitalista. Mas, desse modo, o capital, que agora perdeu
grande parte de sua aparência como força produtiva material, revela a sua
essência, pois se afigura como uma forma de sugar a riqueza gerada pela
atividade social – uma atividade que une indissoluvelmente o trabalho social
com o saber sobre os processos de produção (saber este que se transforma, mais
e mais, de instrumento de apropriação da natureza em capacidade de
reorganização compreensiva da natureza).
O
neoliberalismo é uma forma política totalitária em que a unidade social é
imposta por uma ideologia abrangente (educação, alinhamento “voluntário”,
propaganda, espetáculo, etc.) sempre que possível, mas pela força
(administração do medo, vigilância do grande irmão, ações militares, terror de Estado, etc.) sempre que necessário.
Conforme o neoliberalismo,
o Estado dever atuar, sem qualquer vergonha, como agente que promove os
interesses capitalistas. Representa a opção conservadora diante do esgotamento
histórico tanto do liberalismo social quanto dos socialismos centrados na ação
do Estado. Vem a ser a ideologia que defende o sistema capitalista quando a
relação de capital se tornou potencialmente supérflua e quando a auto-gestão
dos processos de produção pelos próprios trabalhadores começa a se mostrar como
uma opção efetiva, mais produtiva inclusive do que a opção gerencial, e que
permite um maior grau de auto-realização. A pós-grande indústria, diz Fausto,
pode ser caracterizada como “negação” do capitalismo no interior do capitalismo[12].
Já um autor como Melman pode escrever, com otimismo exagerado quando se tem em
mente o momento histórico atual, mas também com uma certa sabedoria, que “o capitalismo está em processo de
transformação, caminhando para uma economia baseada na democracia no local de
trabalho” (Melman, 2001, p. 585).
Enquanto isso
não ocorre, acentua-se cada vez mais a irracionalidade social e ecológica do
capitalismo. Tem razão, pois, Bensaïd quando afirma com base no mesmo texto dos
Grundrisse antes mencionado que a
humanidade está diante de uma encruzilhada:
“Tal como Marx previu em seus
Manuscritos de 1857-1858, ‘o roubo do tempo de trabalho de outrem sobre o qual
repousa a riqueza atual’ aparece então como “uma base miserável’, porque “quando
o trabalho deixa de ser a grande fonte da riqueza sob a forma imediata, o tempo
de trabalho deixa de ser necessariamente a sua medida e, por conseguinte, o
valor de troca deixa de ser a medida do valor de uso’. A exacerbação dessa
contradição constitutiva do processo de acumulação capitalista está na raiz do
desregramento do mundo, de sua irracionalidade crescente, dos danos sociais e
ecológicos” (Bensaïd, 2003, p. 33).
O que e
Podemos definir o neoliberalismo
como um conjunto de idéias políticas e econômicas capitalistas que defende a
não participação do estado na economia. De acordo com esta doutrina, deve haver
total liberdade de comércio (livre mercado), pois este princípio garante o
crescimento econômico e o desenvolvimento social de um país.
- a partir da década de 1970,
passou a significar a doutrina econômica que defende a absoluta liberdade
de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só
devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda assim num grau
mínimo (minarquia). É nesse segundo sentido que o termo é mais usado hoje
em dia.
Significa um política do Estado intervir muito pouco na economia. O mínimo possível.
Eu vou responder de uma forma simples e bem resumida:
O que é politica neoliberal?
A política neoliberal trata-se que o estado não pode interferir na economia do país.É quase a mesma coisa que a política capitalista.
O que é o neoliberalismo e quais são suas principais características?
Neoliberalismo é um termo que foi usado em duas épocas com dois
significados semelhantes, porém distintos. Na primeira metade do século XX
significou a doutrina proposta por economistas franceses, alemães e
norte-americanos voltada para a adaptação dos princípios do liberalismo
clássico às exigências de um Estado regulador e assistencialista.
A partir da década de 1970 passou a significar a doutrina econômica que defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda assim num grau mínimo (minarquia). É nesse segundo sentido que o termo é mais usado hoje em dia.
A partir da década de 1970 passou a significar a doutrina econômica que defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda assim num grau mínimo (minarquia). É nesse segundo sentido que o termo é mais usado hoje em dia.
Caracteristica.
- Neoliberalismo se
carcteriza pela fraca interferência do Estado na atividade econômica,
deixando que as leis de mercado por si só reguleM sistema econômico.
[1] Perry Anderson nota que os
defensores da propriedade privada, no passado, evitaram “propor uma ideologia expressamente capitalista”, mas que,
diferentemente, com a chegada do neoliberalismo, “pela primeira vez na história, o capitalismo se proclama como tal, numa
ideologia que anuncia a chegada de um ponto final no desenvolvimento social,
uma construção de uma ordem ideal baseada em mercados livres, além da qual qualquer
aperfeiçoamento substancial seria inimaginável” (Anderson, 2003, p. 84 e p.
87). Ele nada diz, entretanto, sobre as condições materiais históricas que
tornaram essa ideologia possível.
[2] Wallerstein identifica também essa
primeira mudança, mas não como negação; em conseqüência, ele apenas poderá
enxergar o neoliberalismo, erroneamente, como um retorno: “O que é importante perceber é que esse ‘contra-ataque” é uma reversão
de estratégia pelas classes privilegiadas, ou ainda um retorno à estratégia do
pré-1848, na qual se administrava o descontentamento dos trabalhadores
conjugando indiferença e repressão. Após 1848, até 1968, as classes
privilegiadas tentaram apaziguar a classe trabalhadora através da instituição
do Estado liberal em combinação com doses de concessões econômicas. A
estratégia foi politicamente vitoriosa. Elas apenas reverteram essa estratégia
quando a conta tornou-se muito alta, o que apenas ocorreu recentemente”
(apud Beynon, 2003).
[3] Conforme Dobb, o período histórico
da manufatura vai de meados do século XVI ao último quartel do século XVIII,
quando então se inicia o período histórico da grande indústria (Dobb, 1983, p.
15). Por razões que serão aludidas mais à frente, acredita-se aqui que o
período da grande indústria termina na década dos anos 70 do século XX, quando
então se inicia o período da pós-grande indústria.
[4] O período de formação do
liberalismo clássico vai de meados do século XVIII a meados do século XIX
(fisiocracia e economia clássica; Quesnay e Adam Smith são os grandes nomes). O
período do liberalismo social vai do final do século XIX até os trinta anos
posteriores à segunda guerra mundial (John Stuart Mill e John M. Keynes). A
partir de então se tem o período do neoliberalismo (F. A. Hayek e L. Von
Mises). A predominância dessas ideologias tem, entretanto, uma história muito
complicada. Ver, por exemplo, Polanyi (1980) e Yergin e Stanislaw (2002).
[5] Ver sobre isto Braverman (1974, p.
293-358)
[6] Ver sobre isto Mandel (1982, p. 51-54).
[7] Coriat distingue, nesse aspecto, as
indústrias de processo contínuo em que os trabalhadores, agora polivantes,
atuam de fato como supervisores e controladores externos do processo de
produção, das indústrias de produção em série, utilizadoras intensivas de
robôs, em os trabalhadores continuam submetidos ao ritmo de produção. Nesse
caso, ele diz que os trabalhadores atuam como acompanhantes próximos do
processo de produção. Isto mostra que as novas forças produtivas, pelo menos
dentro da disciplina do capital, apresentam pouco potencial de liberação. Ver
Coriat (1988, p. 111-116).
[8] Sobre a derivação do Estado a
partir de O capital, consultar o
texto “Sobre o Estado”, de Ruy Fausto
(Fausto, 1987, p. 287-329).
[9] Ninguém melhor do que Polanyi
criticou a idéia de que o capitalismo prescinde da intervenção estatal. “A história econômica mostra” – disse – “que a emergência de mercados nacionais não
foi, de forma alguma, o resultado da emancipação gradual e espontânea da esfera
econômica do controle governamental. Pelo contrário, o mercado foi a
conseqüência de uma intervenção consciente, e às vezes violenta, por parte do
governo que impôs à sociedade a organização do mercado, por finalidade
não-econômicas” (Polanyi, 1980, p.
244).
[10] Essa história é contada como uma
grande conquista, do ponto de vista neoliberal, por Yergin e Stanislaw (Yergin
e Stanislaw, 2002).
[11] Uma citação do presidente do Banco
Mundial, James D. Wolfensohn, é bem ilustrativa. Segundo ele, “longe de fornecer evidência para a defesa de
um estado mínimo, as experiências bem sucedidas de desenvolvimento mostraram
que este requer um estado efetivo, que possa ter um papel facilitador, catalítico, encorajador
e complementador das atividades dos indivíduos e dos negócios privados”
(apud Hildyard, 1997, p. 5).
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